Numa manhã de 1º de abril, Entanguido III, monarca do desconhecido reino das Barbadas, teve um surto de lucidez ao mirar a sua face no espelho e perceber que a sua bem-cuidada franja estava virada para o lado esquerdo. Não titubeou e editou mais uma ordem: "Decreto que a democracia se instale nestas terras! Crio o Conselho do Povo, sediado na praça principal, onde, mediante assembléia, todos os habitantes deste oásis tomarão as decisões desta nação". Prostrou-se o reizinho na varanda de seu palácio real, defronte da praça principal, e se dedicou a contemplar a sua recém-criada democracia.
Foram dez dias e onze noites de bebidas e de festas. Comemorava a ralé o alcance do poder. Os ricos comerciantes e fazendeiros, no entanto, de narizes torcidos, resmungavam: "Que democracia ilegítima! Legítimo é o que protege as nossas propriedades". "Ora! Ora!" - asseveravam os acadêmicos - "Como pode surgir uma democracia por decreto? Ilegítimo! Ilegítimo!".
Legitimidade, poder e força são apenas três dos inúmeros vértices essenciais que integram a política. Poder pressupõe relações intersubjetivas, em que um indivíduo tem a potencialidade de influir deliberadamente (ou não?) na conduta de outrem; poder envolve necessariamente força. Entenda-se força como um instrumento, uma arma eficaz que se concretiza por inúmeras modalidades (cooptação e coação são apenas uma delas).
O poder, numa análise preliminar, independe da legitimidade. Imagina-se que o rei Entanguido III, como monarca, exerce sobre os seus súditos um poder que se concretiza por meio da força militar que ele possui para influir nas suas condutas. Edita decretos e impõe cumprimento às suas ordens, sem necessidade de apresentar justificativa que se mostre convincente para balizar as suas medidas. E por mais que alguns súditos não vislumbrem legitimidade na conduta real, obedecem as suas ordens. "Eu tenho meu exército; eu tenho a força; eu tenho o poder", pensa diariamente o rei ao mirar sua franja no espelho.
No entanto, a necessidade de estabilização da relação intersubjetiva que consubstancia e fomenta o próprio poder imprescinde do atributo da legitimidade. A vantagem da estabilização de tal vínculo consiste precipuamente na possibilidade de prolongamento da cadeia de força e de poder. Para tanto, os partícipes da relação precisam vislumbrar a si próprios como integrantes de um vínculo efetivamente legítimo.
Reitera-se: a legitimidade não emana naturalmente da relação intersubjetiva e nem é inerente a ela. A legitimidade é uma forma de percepção de tal vínculo, constituindo um sentido atribuído pelos partícipes da relação, capaz de estabilizá-la de tal forma que a relação de poder se fortaleça. (In)conscientemente, os indivíduos atribuem significados a tudo o que percebem. Trata-se de uma atividade de conformação entre os elementos captados do mundo exterior e as "estruturas" internas dos indivíduos, carregadas por toda a bagagem cultural e genética por eles suportada. É um exercício simultaneamente histórico e fisiológico; cultural e genético.
No caso em tela, a conclusão de tal exercício acarretou divergência acerca da aferição de legitimidade ao decreto do rei Entanguido III entre os habitantes do reino. A justificativa parte do óbvio: cada um vislumbra o mundo à sua maneira. A aferição de legitimidade é uma atividade meramente subjetiva. E é justamente o caráter subjetivo de tal empreendimento que dificulta a conceituação e o estudo desse termo: questionar qual o sentido da legitimidade é desafiador e inquietante, tornando esse um dos mais profundos e inconclusivos debates da filosofia.
Talvez o segredo da legitimidade do poder encontre-se na exata descoberta de um método de força e convencimento que se subsumam às expectativas dos partícipes de tal relação. No entanto, sendo inúmeras as expectativas, impossível encontrar um mecanismo único e universal. Um indivíduo pode acreditar que o decreto do Rei seja legítimo unicamente por considerá-lo sábio e inteligente; outro pode considerá-lo ilegítimo por descrer na possibilidade de uma democracia efetiva imposta por decreto e vigiada por um rei, direto de sua sacada; outro ainda pode considerá-lo legítimo por acreditar na procedência divina do poder real. Nesse sentido, se a conquista da legitimidade é pressuposto para a estabilidade do poder, decerto que é o jogo dos governantes perante os governados que propiciará essa empreitada. É preciso conhecer bem a "platéia" e fazer interagir seus mais diversos interesses. Renasce a velha brincadeira do "discurso", pela qual "vale tudo": do misticismo à filosofia, do poder que emana do povo ao historicismo, da vontade divina à vontade do legislador, da lei maior ao interesse público e (por que não?) da força física à morte e às guerras, em nome da paz mundial.
Após 10 dias e 11 noites de comemorações, iniciaram-se finalmente os trabalhos do Conselho do Povo, alcunhado posteriormente pelos jornalistas de Conselho da Baderna. A situação tornou-se insustentável. Passaram-se meses e foi impossível concluir alguma deliberação. Frustrados com a democracia, lembraram-se os homens o quão era próspera a nação quando governada apenas por um só monarca. Nesse sentido, pensaram em devolver-lhe novamente o poder. Mas não poderiam dar o braço a torcer e reconhecer a própria incompetência. Careciam de uma justificativa que legitimasse a medida. Um acadêmico, por sua vez, foi acometido de uma brilhante idéia: o decreto fora editado em 1º de abril, data na qual, consoante os usos e os costumes da região, tudo o que fosse dito considerava-se como mentira. Realizou-se, então, a primeira e última deliberação do Conselho do Povo: "Todo o poder emana do rei, eis que o decreto que criou este Conselho é falso".
Entanguido III, que assistia à cena atento, da varanda do palácio imperial, deliciando-se com nozes e castanhas - sem esquecer, obviamente, de embelezar a franja a cada brisa que lhe alcançava o rosto -, ria às turras:
- Quão previsíveis são os súditos!