Nem sempre se exigiu que todos os atos estatais fossem razoáveis. Os atos de um monarca absolutista, por exemplo, não estavam sujeitos a qualquer tipo de controle. A situação não mudou drasticamente com a criação dos Estados de Direito, pois as primeiras constituições limitavam-se a estabelecer a estrutura do Estado, impondo limitações meramente formais ao exercício do poder político. Todavia, foi a partir desse momento que se insinuaram as primeiras formas de controle judicial de legitimidade, a partir de inovações que se limitavam ao âmbito do Direito Administrativo. Nos séculos XVIII e XIX, foram desenvolvidas categorias jurídicas como a reasonableness britânica, o Verhältnismässigkeit prussiano, o récours pour excès de pouvoir e o détournement du pouvoir franceses e o eccesso di potere italiano[1]. Esses novos conceitos permitiram ao Judiciário avaliar não apenas os pressupostos formais dos atos administrativos, mas também os juízos de conveniência inerentes à atividade discricionária dos agentes públicos.
Foi apenas no início deste século que o critério de razoabilidade passou a ser exigido também dos atos legislativos. Esse desenvolvimento teve início no direito norte-americano, onde há muito se utiliza a idéia de reasonableness[2], por meio da qual o juiz busca, a partir das particularidades das situações de fato e da regra do precedente, determinar os limites do razoável nos casos concretos.[3] Mas a sua conformação nos moldes atuais ocorreu apenas com a passagem, na jurisprudência dos Estados Unidos, do procedural due process para o substantive due process of law. Nessa virada interpretativa, a Suprema Corte norte-americana consolidou o entendimento de que a atividade discricionária deveria observar alguns standards[4] para que se caracterizasse a obediência ao devido processo.[5]
Na Europa, a França foi pioneira na utilização sistemática da teoria do desvio de poder para controle dos atos administrativos. Todavia, em função da reverência que o Poder Legislativo, o princípio democrático e a soberania popular têm desfrutado entre os franceses desde a revolução de 1789, a idéia de que o Judiciário deveria ter poderes para controlar a constitucionalidade das leis nunca lhes pareceu razoável[6] - sendo que até hoje a França não possui propriamente uma Corte Constitucional[7]. Contudo, essa idéia de que o poder do legislador não pode ser limitado não se restringia à França, tendo sido compartilhada pelos países europeus em geral.
Tal situação apenas foi alterada substancialmente após a Segunda Grande Guerra. A noção de que o poder do legislador não poderia ser limitado foi um dos elementos que contribuíram para a ascensão do nacional-socialismo na Alemanha. A ausência de controle jurisdicional sobre o juízo de conveniência do legislador facilitou a implantação da legislação nazista. Por isso, a Segunda Guerra Mundial apresenta-se como um marco importante no controle de legitimidade. Como afirmou Chaïm Perelman, a experiência do regime nacional-socialista foi um dos principais fatores que levaram à diminuição do respeito pela onipotência do legislador, característico da Europa do séc. XIX[8]. Assim, no pós-guerra a Europa conheceu a expansão do controle de razoabilidade dos atos administrativos. Na Alemanha, a proibição do excesso [Übermassverbot] foi elevada à categoria de princípio constitucional; na França os atos administrativos começaram a ser invalidados com fundamento em erreur manifeste d'apréciation; na Inglaterra confrontaram-se com o limite da manifest unreasonableness e na Itália foram invalidados os juízos de manifesta illogicità, de congruità e ragionevolezza.
Já o controle de razoabilidade das leis teve início com o transplante da teoria administrativa francesa para a Alemanha, onde o Legislativo não tinha no ideário nacional a intangibilidade que lhe atribuíam os franceses, especialmente após a experiência nazista. Por obra do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, o controle de legitimidade foi transposto do Direito Administrativo para o constitucional. A partir da jurisprudência da Corte, o princípio da proporcionalidade[9] foi elevado ao status de princípio constitucional implícito, por ter sido considerado como inerente à idéia de Estado de Direito.
Desde a sua instituição, pouco após o fim da Segunda Guerra Mundial, o Tribunal Constitucional Federal "foi cunhando paulatinamente o princípio, por meio de inúmeras decisões reconhecendo que o legislador não se deve exceder na sua liberdade de conformação dos direitos fundamentais"[10]. Segundo a moderna teoria alemã da proporcionalidade, toda restrição de direitos precisa ser adequada, necessária e proporcional, no sentido que deve ser apropriada para a consecução dos fins da norma, deve limitar os direitos o menos possível e deve traduzir uma justa medida entre o interesse público e o direito limitado.[11]
Assim, a devida compreensão do controle de razoabilidade exige a compreensão do desenvolvimento das categorias de devido processo e de princípio da razoabilidade, que se formaram respectivamente na jurisprudência norte-americana e alemã, e que se apresentam atualmente como os principais conceitos capazes de orientar o controle judicial de razoabilidade.
[1] Barros, O princípio da proporcionalidade..., pp. 37-41; Canotilho, Direito Constitucional, p. 261.
[2] Literalmente: razoabilidade.
[3] Canotilho, Direito Constitucional, p. 260.
[4] A tradução literal de standards seria padrões. No entanto, o termo jurídico de significado mais próximo seria critérios, pois se trata de critérios de razoabilidade que se exige dos atos estatais. No entanto, quando nos referirmos expressamente ao direito norte-americano, utilizaremos o termo standard - que é a palavra usada na jurisprudência dos Estados Unidos e que tem uso corrente na teoria jurídica de outros países.
[5] Sobre esse tema, vide Capítulo II - A -
[6] Barros, O princípio da proporcionalidade...pp. 37-41.
[7] Embora tenha dado alguns passos nesse sentido durante as últimas décadas.
[8] Perelman, L'interpretation juridique, p. 32.
[9] Categoria jurídica utilizada pela Corte Constitucional Alemã para proceder ao controle de razoabilidade.
[10] Barros, O princípio da proporcionalidade..., p. 43.
[11] Canotilho, Direito Constitucional, p. 417.