O tema da norma jurídica pode despertar interesse por vários vértices. Particularmente para o fim deste texto, a norma ganha relevo na medida em que pode ser, de certa forma, associada à definição de questão de direito. Ademais, se no item anterior pretendemos esclarecer as relações entre fato e prova; neste item retomamos o tema que deve ser o antípoda do anterior no intuito de que se faça a comparação entre questão de fato e de direito com alguma propriedade.
Enquadrada e justificada a abordagem, a metodologia normativa se mostra - sendo este aspecto de suma relevância - como molde de outros conceitos já cotejados, notadamente prova e direito. Isto porque quando falamos em norma (sentido), falamos nitidamente em algo que transborda o que se constitui em texto normativo (objeto).
"Do ponto de vista formal, que aqui elegemos, uma norma é uma proposição. (...) Por proposição entendemos um conjunto de palavras que possuem um significado em sua unidade. Sua forma mais comum é o que na lógica clássica se chama juízo, uma proposição composta de um sujeito e de um predicado (...)."[1]
Da mesma forma, a prova é uma atribuição de sentido ao objeto fático, embora pretenda ser uma relação menos arbitrária. Assim, podemos traçar um paralelo na medida em que o consenso em torno do sentido (referente à norma ou à prova) deriva de uma argumentação que invoca objetos (seja o texto normativo ou o próprio fato). O paralelo fica ainda mais claro se evidenciarmos que ambos os juízos pretendem ser descritivos, ainda que o juízo normativo exista em função de uma prescrição, pois o que se pretende ao interpretar é enunciar o conteúdo normativo correto - ou se negada esta possibilidade, ao menos um conteúdo plausível.
Não obstante essa aproximação - dado que são ambos desenvolvimentos retóricos de atribuição de sentido por consenso jurídico, e que não há formulação de pensamento jurídico fora de sua linguagem[2] - coloca-se um separador intransponível entre os objetos. Separam-se os conceitos, ou melhor, busca-se uma separação em vista de imperiosa previsão de súmula orientada pelo nosso modelo constitucional de recursos. O problema se recapitula nesses moldes: buscar a distinção entre fato e direito no propósito de delimitar uma exigência pragmática do processo.
De outra parte, a distinção estanque, tal qual foi colocada, cai por terra ao percebermos que a dinâmica argumentativa definidora dos conceitos está embutida num discurso jurídico muito assemelhado. Ainda mais ao nos darmos conta de que a utilidade dessa definição é estabelecer critérios de procedimentalidade (admitir ou não o recurso), ou seja, é um critério atingido por meio do contraditório para o obtenção de uma vantagem. Daí que ambos (fato ou direito) são definidos da mesma forma, embora o direito seja assumidamente reconhecido por argumentos e o fato pretensamente demonstrado por prova. Em outras palavras, a prova é um conceito jurídico e só pode ser reconhecido como tal e aplicado como tal, tendo como conseqüência imediata sua prevalência sobre qualquer ontologia, ainda que na mitologia jurídica as provas tenham relação necessária e direta com o mundo dos fatos. Trata-se de mais uma face da persuasão, agora extrapolando os limites do caso concreto e funcionamento como critério de aceitação e estabilidade das decisões fundamentadas em atenção a estes critérios.
Ainda no que concerne especificamente à norma, teremos a oportunidade de discorrer mais adiante sobre sua constituição e seu papel, notadamente quando abordados os temas da interpretação normativa e da construção de uma teoria da decisão.
[1] Bobbio, Teoria da norma (...), p. 72-73.
[2] ""Uma vez que o homem só pensa por meio de palavras ou outros símbolos externos, estes poderiam voltar-se para o homem e dizer-lhes: "você não significa nada que não lhe tenhamos ensinado, e isto apenas enquanto dirige algumas palavras como interpretantes do seu pensamento". Com efeito, os homens e as palavras se educam mutuamente; cada incremento da informação humana comporta, e é comportado, por um correspondente incremento da informação das palavras. E o signo ou a palavra que os homens usam são o próprio homem. Porque o fato de cada pensamento ser um signo, em conexão com o fato de a vida ser uma cadeia de pensamentos, prova que o homem é um signo, e que todo pensamento seja um signo externo prova que o homem é um signo externo. O que equivale a dizer que o homem e os signos externos são idênticos, no mesmo sentido em que são idênticas as palavras homo e man. Portanto, minha linguagem é a soma global de mim mesmo: porque o homem é o pensamento"." Umberto Eco, Tratado geral de semiótica, p. 257-258.